Artigos Sabedoria
O Crente, O Sofrimento e Perspectiva
Por Stephen Davey e Denis Salgado
Publicado em 21 de março de 2020
Talvez a pergunta mais comum na vida seja: “Por que isso está acontecendo?” Sua irmã gêmea é: “Onde está Deus em meio a tudo isso?” Ou ainda: “Por que Deus permitiu que isso acontecesse?” Quer seja por meio de um vírus como o COVID-19 ou de deslizamentos de terra que derrubam habitações e ceifam vidas, desastres mexem com o ser humano. Os que creem em Deus são tentados a se perguntar se ele está envolvido em tragédias, se interessa realmente com o que acontece no planeta que criou e é poderoso o suficiente para controlar a natureza. Milhões de pessoas dentro e fora da igreja se perguntam se Deus é indiferente, insensível ou desinteressado. Essas perguntas naturalmente surgem. Independente de crença, o ser humano geralmente busca explicações para desastres naturais e o sofrimento em geral.
A resposta que o mundo oriental oferece ao sofrimento não envolve um Deus ativo e pessoal. Orientalistas afirmam que as pessoas afetadas estão vivendo segundo a lei do Karma—todas as ações da vida hoje resultam de ações de uma vida passada. Enfermidades, deficiências, pobreza, fome e todas as ações cruéis de outros contra nós são expressões de julgamento por obras perversas em uma existência pregressa. Tentar aliviar a dor e a miséria seria interferir com a justiça. Essa é uma explicação clara, simples e direta para o sofrimento.[i] Enquanto isso, cristãos em geral têm a tendência de interpretar tragédias à luz do que acham que Deus está tentando dizer. Às vezes, somos péssimos porta-vozes de Deus.
A fim de nos ajudar a navegar por esses questionamentos que brotam em momentos perturbadores, o Senhor incluiu em sua Palavra o que aconteceu com um de seus servos mais fiéis—o justo Jó. Quando o assunto é sofrimento, especialmente do crente fiel a Deus, é impossível não pensar em Jó. Se tivéssemos sido seus vizinhos na época em que os eventos de Jó capítulo 1 aconteceram, teríamos feito as mesmas indagações sobre o caráter de Deus e o porquê do sofrimento. Na verdade, a maioria do restante do livro não passa de Jó e seus amigos tentando responde-las.
Numa tarde, os sonhos de Jó se transformaram em pesadelos: os sabeus levaram seus animais e mataram os empregados de sua fazenda (vv. 14–15); um fogo que caiu do céu consumiu sete mil ovelhas e matou os pastores (v. 16); os caldeus atacaram seus negócios, roubaram todos os camelos e mataram todos os empregados, exceto um (v. 17); e um vento arremeteu contra a casa do filho primogênito de Jó e todos os seus dez filhos morreram (v. 18–19).
A despeito da seriedade das perdas materiais, o problema de Jó está ligado a outros dois eventos—o vento que pareceu ter como alvo a casa de seu filho mais velho e o fogo que desceu do céu. Esses parecem ter sido atos de Deus. Como abordamos os atos de Deus que acarretam sofrimento humano? E o que dizer de atos de crueldade do ser humano? Onde estava Deus?
ABORDAGENS AOS “ATOS DE DEUS”
Podemos listar pelo menos cinco abordagens diferentes a essas questões que geralmente rotulamos como “atos de Deus.”
Primeiramente, existe a abordagem trivial. Essa pessoa não se preocupa com a questão e diz: “Isso não é da conta da maioria das pessoas. Deus quer que sejamos felizes e acho que o diabo às vezes atrapalha.”
Em seguida, existe a abordagem hipócrita. É claro, aqueles que usam essa abordagem a fazem sem perceber! Esses são os crentes que dizem: “Deus não teve nada a ver com a enchente. Tudo aquilo foi por causa das forças da natureza. Deus está no controle, mas ele permite que a natureza tome seu rumo.” O motivo por que isso é hipocrisia é que a maioria desses crentes clama a Deus por chuva em épocas de seca e suplica por sol no dia do seu casamento. Eles agradecem a Deus pelo bom tempo, reconhecendo que Deus tem algo a ver com o clima.
Em terceiro lugar, existe a abordagem impulsiva. Em uma reportagem, perguntaram a um crente: “Por que Deus não se mostrou presente durante esses desastres?” O crente respondeu: “Bom, temos mandado Deus sair de nossas salas de aula, família e política… agora, ele se foi; não podemos culpá-lo!” Essa parece ser uma boa resposta, mas levanta questões complicadas sobre o caráter de Deus. Será que Deus está com birra e amuado porque foi expulso das escolas? Será que “pegou o seu banquinho e saiu de mansinho” porque a sociedade o ignora? Quando afirmamos isso, acabamos nos tornando os soberanos e Deus dependente de nossas ações, humor, legislações e regulamentações.
A quarta abordagem é a superficial. Ela foca nos problemas mais simples em detrimento das questões mais profundas sobre a natureza e o caráter de Deus. Ela é fruto de falta de conhecimento teológico profundo ou indisposição de crescer em entendimento.
John Piper comentou:
A igreja não tem investido energia para se aprofundar no inescrutável Deus da Bíblia. Contra a forte evidência e seriedade das Escrituras, a igreja em nossos dias tem escolhido se tornar mais light e superficial, além de focada em entretenimento. Portanto, ela se tornou irrelevante enquanto ao mesmo tempo afirma ser relevante. A verdade é que o Deus popular de igrejas legais é simplesmente pequeno demais e sociável demais para segurar em suas mãos um furacão.[ii]
A última abordagem é a da indisposição para responder. Seguimos essa abordagem quando não queremos tentar responder. Realmente temos dificuldades em condensar uma solução em uma resposta com três sentenças. Assim, simplesmente nos evadimos.
PRINCÍPIOS SOBRE OS “ATOS DE DEUS”
Vamos considerar alguns princípios que nos auxiliam a elaborar uma resposta e reconhecer a soberania de Deus no meio de desastres.
Primeiro princípio: o sofrimento na terra é mais comum do que geralmente reconhecemos
Os jornais nos levam a alguma cidade ou vilarejo onde pessoas morreram por causa de um deslizamento de terra, uma avalanche ou tornado. Parece que estamos cercados de desastres naturais. Especialmente nestes últimos meses, a mídia tem nos levado de uma crise a outra, de uma morte a outra decorrentes do COVID-19 ou de deslizamentos e inundações por consequência de fortes chuvas.
A verdade é que perguntar por que pessoas morrem quando desastres naturais ocorrem é semelhante a perguntar por que pessoas morrem. Seis mil pessoas morrem a cada hora em todo o planeta—a maioria delas como resultado de algum tipo de sofrimento. Quando tiver terminado de ler esta sentença, setecentas pessoas terão morrido. Muitas delas morrerão de doenças, crimes, acidentes, suicídio, fome e desastres naturais. O único motivo por que desastres naturais chamam nossa atenção é que eles intensificam dramaticamente a ocorrência diária de morte e destruição.[iii] Existem sofrimento e morte na terra e eles são mais comuns do que podemos compreender.
Segundo princípio: o mundo sofredor de hoje não é o mesmo mundo criado por Deus
Paulo escreveu em Romanos 8.18–19, 22–23, 25:
Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós. A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus… Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo… Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos.
Nesse parágrafo, Paulo faz uma conexão direta entre a queda do homem no pecado e a maldição sobre a criação. O mundo que Deus criou originalmente e o mundo que agora geme com terremotos, secas e inundações são sistemas mundiais diferentes; o mundo de hoje está fora de ritmo. A ordem da criação aguarda a restauração que Deus efetuará.
Como Erwin Lutzer apontou, a natureza é amaldiçoada porque o homem foi amaldiçoado; o mal natural e a brutalidade (existentes no mundo animal e físico) são reflexos do mal moral no sentido de que ambos são selvagens, cruéis e prejudiciais. A natureza é um espelho no qual nos vemos a nós mesmos.[iv]
Isso pode facilmente conduzir ao desespero. De fato, sem a palavra revelada de Deus, não teríamos resposta alguma para a dor e o sofrimento. William James estaria certo ao dizer que somos todos como cachorros dentro de uma biblioteca—vendo os livros, porém incapazes de ler suas palavras.[v]
Todavia, as Escrituras não nos deixam sem esperança. A humanidade caiu e a natureza foi junto com ela, mas nenhuma das duas caiu das mãos soberanas, do plano ou do propósito do Criador. Deus não abandonou o controle diário de sua criação. Apesar de ter estabelecido leis físicas pelas quais governa as forças da natureza, essas leis operam continuamente segundo a sua soberana vontade.
Lemos essa verdade de forma clara e direta nas Escrituras:
ele [Deus] o solta por debaixo de todos os céus, e o seu relâmpago, até aos confins da terra… Porque ele diz à neve: Cai sobre a terra; e à chuva e ao aguaceiro: Sede fortes… Pelo sopro de Deus se dá a geada, e as largas águas se congelam. Também de umidade carrega as densas nuvens, nuvens que espargem os relâmpagos. Então, elas, segundo o rumo que ele dá, se espalham para uma e outra direção, para fazerem tudo o que lhes ordena sobre a redondeza da terra. E tudo isso faz ele vir para disciplina, se convém à terra, ou para exercer a sua misericórdia
(Jó 37.3, 6, 10–13).
Davi escreveu no Salmo 147.8, 16–18:
que cobre de nuvens os céus, prepara a chuva para a terra, faz brotar nos montes a erva… dá a neve como lã e espalha a geada como cinza. Ele arroja o seu gelo em migalhas; quem resiste ao seu frio? Manda a sua palavra e o derrete; faz soprar o vento, e as águas correm.
O profeta Amós incluiu o testemunho do próprio Deus em Amós 4.7:
Além disso, retive de vós a chuva, três meses ainda antes da ceifa; e fiz chover sobre uma cidade e sobre a outra, não; um campo teve chuva, mas o outro, que ficou sem chuva, se secou.
Um teólogo escreveu:
Nada, absolutamente nada—nenhuma coisa má, pessoa perversa ou evento natural doloroso—está fora da vontade ordenada de Deus. Nada surge, existe ou permanece independente da vontade de Deus. Então, quando até mesmo os piores males caem sobre nós, eles não procedem de outra coisa senão da mão de Deus.[vi]
Todas as expressões da natureza, quer seja um tornado devastador ou uma chuva leve de primavera, são atos de Deus. Deus controla todas as forças da natureza, tanto as destrutivas como as produtivas, momento após momento e de forma contínua. Isso significa que o crente nunca é uma vítima dos poderes da natureza, do acaso ou do destino.[vii] A causa indireta de nossa morte ou sofrimento pode ser a natureza ou a violência, mas por trás disso está o plano e o propósito de Deus.
Terceiro princípio: o caráter e a obra de Deus na terra são diferentes do que imaginamos
Se a Bíblia ensina que Deus é absolutamente soberano, então, no fim, Deus é o responsável. Será que a Palavra de Deus apoia isso?
Naum nos apresenta a um Deus misterioso: o SENHOR tem o seu caminho na tormenta e na tempestade (Na 1.3). Davi escreve que Deus não presta contas a ninguém: No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada (Sl 115.3). O registro de Isaías concorda com essa verdade: Jurou o SENHOR dos Exércitos, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e, como determinei, assim se efetuará (Is 14.24); e: Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas (Is 45.7).
A igreja hoje faz de tudo para não culpar Deus enquanto Deus assume toda responsabilidade. Este universo pertence Deus. Portanto, aquela foi a sua tempestade, o seu raio, a sua enchente, o seu sol e a sua avalanche! Nisso tudo, o poder de Deus é revelado (Rm 1.20). Precisamos ser reapresentados a um Deus que nos causa desconforto e que é completamente diferente de nós (Sl 50.21).
PROPÓSITOS DOS “ATOS DE DEUS”
Se Deus está em total controle sobre a natureza, então por que ele não mantém tudo tranquilo como um mar de rosas e com céu limpo? C. S. Lewis escreveu: “Deus cochicha em nossos ouvidos durante tempos de deleite, fala em nossa consciência, porém grita em nossa dor. A dor é o megafone para despertar um mundo surdo.”[viii] Vamos fazer algumas colocações acerca dos propósitos dos sofrimentos como atos de Deus. A esperança é que elas sirvam para produzir em todos nós uma perspectiva bíblica sobre o assunto.
Primeiro, os atos de Deus são um lembrete dos valores na vida
Agostinho escreveu certa vez: “Deus nos daria algo, mas não dá porque nossas mãos estão cheias.” Quando tudo o que temos é arrancado de nós e ficamos de mãos vazias, descobrimos novamente as coisas que realmente importam. Atos de Deus nos lembram da verdade sobre a vida.
Segundo, atos de Deus nos levam a abrir mão de certas expectativas para a vida
Coisas que pensávamos que tínhamos o direito de possuir desaparecem. Falência financeira, doença e um acidente nos lembram de que nossa expectativa na vida deve estar em Deus e em Deus somente.
Terceiro, atos de Deus fornecem uma perspectiva realista a respeito da brevidade da vida
Quando as coisas vão bem, ficamos na ilusão de que a vida é algo já certo. Daí, nosso peito começa a doer. Quando nos damos conta, estamos em um leito de hospital conectados a vários fios e alguns médicos ao lado dizendo: “Você chegou na hora exata.” Estejamos nós cientes disso ou não, hoje poderia ser o nosso último dia na terra.
Quarto, desastres nos alertam quanto ao julgamento eterno sobre todos os viventes
“A natureza reflete os atributos graciosos de Deus, mas também seus atributos de ira e justiça (Jó 37.7, 10–13).”[ix] Acidentes que tiram as vidas de outros são um lembrete de um julgamento vindouro do qual não haverá saída.
Em Lucas 13, o Senhor pregava logo após uma torre ter caído. Esse foi um desastre inesperado que resultou na morte de dezoito pessoas. O Senhor Jesus usou o incidente em seu sermão como uma ilustração de que todos morrerão um dia e enfrentarão um julgamento.
O sofrimento de pessoas ao redor do mundo serve para ilustrar o fato de que a humanidade caída será, um dia, ou libertada do sofrimento em glória, ou condenada a sofrimento eterno. A perda inesperada da vida nos lembra de que todos teremos uma entrevista com Deus. David Miller escreveu: “Desastres naturais fornecem às pessoas uma evidência conclusiva de que a vida na Terra é breve e incerta.”[x]
Quinto, desastres são um convite para se andar com Deus pela vida
Deus não promete ausência de tempestades, mas promete estar conosco nas tempestades (conf. Dn 3; Jo 6.16–20). Então, como Warren Wiersbe escreveu certa vez: “Não fique amargurado, cresça!” Desastres acontecem e eles são o megafone de Deus. Ele diz: “Ande comigo!”
Finalmente, desastres na vida são lembretes de que o sofrimento dos crentes um dia será substituído por alegria eterna
No final da história humana quando chegar o julgamento de Deus, o qual não se comparará em nada aos desastres nesta terra, haverá apenas duas categorias de pessoas: as salvas e as perdidas.[xi] Para as salvas, o sofrimento começará a fazer sentido. Para as perdidas, o sofrimento estará apenas começando—para nunca acabar.
Paulo escreveu: “O sofrimento do presente não pode ser comparado com a glória que será revelada em vocês” (Rm 8.18). Aqui jaz a esperança do crente: o sofrimento neste mundo, além de transitório, faz sentido da perspectiva de Deus e será substituído por glória eterna e inimaginável.
Portanto, enquanto você navega pelas crises sociais que têm afetado milhares pessoas pelo mundo inteiro nesses últimos dias, lembre-se de que desastres e o sofrimento em geral estão debaixo do controle soberano de Deus. Em sua eterna sabedoria, ele orquestra misteriosamente todos os eventos em nossas vidas para cumprir seu propósito perfeito. Cabe a nós nos submeter à sua mão poderosa e sábia. A oração é que nenhum sofrimento seja desperdiçado, mas sirva para reestruturar nossas prioridades e reajustar nossa perspectiva em relação ao próprio sofrimento, ao caráter da vida presente e à esperança eterna que aguarda o crente em Jesus Cristo. Principalmente, seja COVID-19, deslizamentos de terra ou secas, que cada discípulo de Cristo aprofunde sua confiança no Senhor e testemunhe ao mundo perdido de um Deus Todo-Poderoso e sábio. Apesar de não o vermos agora, ele está presente!
NOTAS
[i] Paul E. Little, Know Why You Believe (IVP, 1974), 83.
[ii] John Piper e Justin Taylor, Suffering and the Sovereignty of God (Crossway, 2006), 18.
[iii] Erwin Lutzer, Where Was God? (Tyndale House, 2006), 18.
[iv] Ibid., 13.
[v] Ibid., 12.
[vi] Mark Talbot, citado por Piper e Taylor, 47.
[vii] Jerry Bridges, Is God Really in Control? (NavPress, 2006), 57.
[viii] C. S. Lewis, The Problem of Pain (Harper/Collins, 1940), 91.
[ix] Ibid., 67.
[x] David Miller, citado por Lutzer, 57.
[xi] Lutzer, 74.